quarta-feira, 27 de junho de 2018

Todos os abraços que a distância não me deixou dar

POR RUTH MANUS





Meus braços sobram. Tantas pessoas que eles deveriam ter envolvido e não envolveram. Tantos abraços que eu queria ter dado e não dei. Meus braços sobram, pouco gastos, menos utilizados do que deveriam. Sim, há abraços por aqui. Abraços igualmente relevantes- longe de mim negá-los. Mas não tem jeito, a lista dos abraços não dados se estende dia após dia.

Os abraços de aniversário, bobos e corriqueiros, que não dei. Aqueles abraços que acompanham os votos de “que seja um ano muito bom, de muita saúde, muita alegria e muito afeto”. Tornei-me apenas os votos que ecoam em aúdios de whatsapp ou em letras que aparecem numa tela de luz artificial. Tornei-me rara, pouco física, passível de ser ligada à tomada para carregar.

Não dei os abraços mais necessários. Não dei os abraços em quem despencava de lá do alto. O amigo que perdeu o pai. A amiga que perdeu o emprego. Os amigos que pediram o divórcio. Lá vinha eu, batucando num teclado, tentando buscar as palavras que supostamente amenizariam aquelas dores e que em tese reduziriam a amplitude da minha ausência.

Não dei os abraços nas crianças que viriam correndo em minha direção. Fui a imagem de Skype e de Facetime que acompanhou o crescimento desses pequenos nas telas das quais eles fugiam enquanto procuravam seus brinquedos. Minhas mãos, quase inúteis, seguravam um celular no ar para captar minha imagem em vez de segurar suas perninhas gordas, suas mãos sujas de bolachas, seus brinquedos babados.

Não dei os abraços naqueles que temos o medo eterno de perder. O abraço nos mais velhos, com cheiro de talco e de colônia. Não segurei suas mãos enrugadas, nem envolvi seus ombros já um pouco caídos com meus braços firmes. Não senti suas malhas de lã, nem a calma do abraço lento de quem já não quer sair correndo, todo o tempo com pressa.

Não dei os abraços que meu peito pediu aos berros nos momentos de angústia. Chorei no banheiro com as perninhas encolhidas. Abracei travesseiros por não poder abraçar meus pais. Abracei amigos novos por não poder recorrer aos velhos. Engoli seco, lavei o rosto e pensei “eu posso seguir sem esses abraços, eu sei que posso”.

De fato não dei tantos abraços urgentes que meu corpo gritava por querer dar. E isso se deve ao fato de que eu optei por abraçar o mundo. A velha história de ter medo, mas ir mesmo assim. De doer, mas permanecer mesmo assim. De ter um custo muito alto, mas avançar mesmo assim.

Não, não acho que um dia pare de doer, nem que nossos braços se habituem com os abraços não dados, tampouco que quem deveria recebê-los deixe de sentir sua falta. Não tem remédio, os abraços ficam pendentes. Por vezes embarcamos e, ao aterrissar, damos-os todos de uma só vez, sedentos, efusivos, atrasados.

Mas, no fundo, a gente acaba aprendendo a abraçar em pensamento. Não, não é uma solução à altura, mas a presença vai se fazendo de outra forma. Cada escolha uma renúncia, isso é a vida, não era isso que o Chorão dizia? E abraçar o mundo segue sendo uma escolha que, no fim das contas, pode doer mas segue fazendo sentido aqui dentro. Meus braços hão de aguentar.

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