quarta-feira, 16 de março de 2016

Ok, vamos ser amigos

IVAN MARTINS
16/03/2016 - 09h48 - Atualizado 16/03/2016 11h40

Me peguei ao telefone, faz uns dias, dizendo coisas em que eu não acredito. “Não se preocupe”, eu disse. “Sei exatamente qual botão apertar para transformar desejo em amizade”. Na verdade, não faço a menor ideia de onde fica esse botão, mas a situação exigia uma frase de efeito.
Mais tarde, pensando sozinho no sofá de casa, percebi que tinha dito meia verdade: nos últimos anos, depois de muitos mal-entendidos, aprendi a conviver com mulheres que acho atraentes sem extrapolar os limites da amizade. Não é simples como apertar um botão, mas tampouco é difícil. E os resultados são espetaculares.
O impulso de conquistar todo mundo nos leva a um mar de frustrações e nos coloca no mundo com o pé errado. A amizade entre homem e mulher, por outro lado, é densa e complementar, e raramente produz sentimentos negativos. Ninguém que eu conheço se arrependeu de ter feito um amigo ou uma amiga. Muita gente que eu conheço gostaria de apagar do currículo transas precipitadas.
Quando você conhece alguém, está no controle total de suas faculdades emocionais. Não existe paixão que cai como um raio, reduzindo a pessoa a uma sopa de sentimentos. Mesmo o sorriso mais cativante e os modos mais sensuais estão no terreno da superficialidade. Essas sensações instantâneas estão longe da rendição incondicional que acontece quando a gente se apaixona. Mas paixão exige algo mais do que aparência. Exige que o outro esteja instalado dentro de você, e isso requer tempo e permissão emocional.
É nos primeiros contatos que a gente define que tipo de relação terá. Podemos nos deixar levar pela atração do romance e do sexo, que é a forma de relação mais glamourizada do nosso tempo. Ou podemos optar pela amizade, pondo de lado, sem negar que exista, a atração sexual. Freud chamava isso de sublimação, e dizia que é a essência da civilização. Se fizéssemos tudo o que temos vontade de fazer, o tempo todo, seríamos pouco mais do que bichinhos brutos e sensuais.
A escolha entre romance e amizade acontece precocemente, mas não é uma coisa fria, racional. A gente escolhe de forma inteiramente emocional, sem perceber.
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Depois de algum tempo de convívio, aquela pessoa bonita e sensual já não afeta você da mesma forma. Existe ternura entre vocês, mas não há paixão. Você olha aquela mulher linda – ou aquele cara másculo - e sente principalmente carinho. O desejo inicial caiu para um plano secundário. Você gosta da presença dele ou dela, mas sem a agonia das pessoas que amam. Vê-la ou vê-lo na companhia de outra pessoa não lhe faz mal. Pelo contrário. Seu afeto é destituído de egoísmo.
Isso acontece inclusive entre pessoas que já foram amantes ou namorados. Quando o sentimento termina, a relação vai lentamente mudando de cor e de forma. Elas continuam atraentes uma para a outra, mas, estranhamente, ninguém mais está atraído. Poderia rolar sexo, mas isso deixou de ser o mais importante. O eixo da relação mudou. Agora, está em outro lugar. Quando se chega a esse ponto, é a hora de dizer “OK, vamos ser amigos”.
Às vezes, essa metamorfose de sentimentos ocorre apenas para uma das partes. Então dói.
Por causa do machismo, os homens têm mais dificuldade do que as mulheres em explorar as possibilidades emocionais da amizade. O machismo nos manda comer todas as mulheres do mundo, sobretudo aquelas que achamos atraentes. Qualquer outra coisa é plano B, desistência, derrota. Melhor uma foda ruim do que uma boa amizade, a gente diz, às gargalhadas. Mas isso é pura besteira. Sexo ruim - ou sexo sem sentimentos, o que às vezes é a mesma coisa – deixa traumas, provoca angústia e afasta as pessoas. A amizade cria sentimentos bons e aproxima.
Se a amizade for plano B, tampouco há problema.  A relação pode começar com alguém tentando uma cantada. Para muitas pessoas – homens, sobretudo – esse é o jeito natural de se aproximar. Mais tarde, diante da recusa do outro, diante da impossibilidade, o sedutor ou sedutora começa a notar que existe algo na relação além do sexo que não houve. Percebe que emana da outra pessoa um monte de sentimentos legais, e que ela, vestida e em pé, em vez de nua e deitada, pode ser uma parte importante da vida. Esse é um momento importante na biografia de pessoas adultas – quando a gente descobre que, ao contrário da lenda, existe amizade entre homens e mulheres.
No fundo, pessoas de todos os sexos precisam fazer as pazes com a ideia de que não é possível seduzir todo mundo. Uma vez que a agente assimile essa verdade inconveniente, tudo fica mais fácil. Inclusive perceber que a graça e a beleza das pessoas não desaparecem quando elas se tornam nossas amigas. Elas continuam lá, mas começam a se tornar visíveis outras qualidades, mais sutis, que a gente só nota quando os nossos olhos deixam de desejar e passam a observar fraternalmente, com carinho.

http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ivan-martins/noticia/2016/03/ok-vamos-ser-amigos.html 

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