IVAN MARTINS
10/02/2016 - 09h30 - Atualizado 10/02/2016 12h44
Ao ver as ruas de São Paulo tomadas por blocos de Carnaval, como eu vi nos últimos quatro dias, fui assaltado por um sentimento deesperança que vai muito além da festa.
Ao contrário do que me dizem desde que eu sou criança – que as coisas no Brasil não mudam – eu vi essa mudança acontecendo diante dos meus olhos, no meu tempo, numa escala impensável e imprevisível.
A cidade que costumava ser o túmulo do samba, de onde as pessoas fugiam para celebrar o Carnaval, tornou-se no tempo exíguo de três anos numa grande metrópole carnavalesca.
Essa não foi uma transformação banal e não diz respeito apenas ao Carnaval. Ela sugere uma coisa da maior simplicidade e importância: que a sociedade é capaz de modificar o mundo ao seu redor para moldá-lo ao seu desejo.
Se nós, juntos, pudemos inventar um tipo de felicidade, por que não inventar o resto?
Havia em São Paulo um claro desejo reprimido por Carnaval, uma demanda oculta e vasta por celebração. Os paulistanos viajavam ao Rio ou a Salvador, iam a Recife atrás da alegria que não havia na cidade deles.
A cidade tinha bloquinhos esparsos, sempre teve, mas eles eram pequenos, não consistiam alternativa de festa para multidões. Nos últimos anos, algo mudou.
Repentinamente, a iniciativa de criar blocos de Carnaval se multiplicou. Já não eram 10 por ano, mas 200 ou 300. Os blocos começaram a surgir em toda parte, em diferentes bairros, refletindo a organização e a animação das pessoas. Cresceram espetacularmente.
A prefeitura, que poderia resistir ou atrapalhar, apoiou. Divulgou, criou espaços, forneceu estrutura, regulou a festa para impedir que ela virasse selvageria urbana.
O segredo da mudança está nesse tripé: o desejo disseminado das pessoas, a iniciativa de organização de algumas delas e o amparo do poder público. Se uma parte tivesse faltado, não aconteceria.
Mas cabe uma pergunta: por que aconteceu agora, e não antes? A resposta também é simples: porque algo mudou na atmosfera política da cidade.
Nos últimos anos, manifestou-se em São Paulo uma tendência muito forte das pessoas se apossarem do espaço da cidade. Sobretudo os jovens. Isso se percebe em coisas como o MPL, o Movimento Passe Livre, que vai às ruas enfrentar a polícia por transporte gratuito. Mas se nota também nos grupos de bicicleta e nas famílias que ocupam a avenida Paulista no domingo.
A mobilização em São Paulo alimenta a si mesma. Quanto mais as pessoas fazem, mais elas querem fazer. Ao ocupar as ruas em manifestações, os jovens se apropriam do espaço urbano, e isso muda a relação deles com a cidade.
Essa energia transformadora é a mesma que alimenta o Carnaval. Ele vira uma espécie de celebração das conquistas coletivas. Ao mesmo tempo, os blocos, desfilando sob os prédios do centro, reforçam a sensação de que cidade pertence aos foliões.
Tudo está interligado e avança como um bloquinho bem organizado.
O adolescente que ocupa as escolas estaduais é o mesmo que sai no pré-Carnaval cantando em coro a velha e utópica Internacional, na mesma praça da República em que as meninas do bloco afro Ilê Obá de Mim batem tambores e executam as danças complexas dos orixás.
É tudo parte do mesmo movimento e da mesma festa – e tudo acontece no terreno simbólico, que tem enorme importância.
Uma sociedade que se percebe capaz de realizar as transformações que julga necessárias está viva. Uma sociedade-vítima, fatalista e apática, que se imagina impotente, é apenas pasto queixoso para os predadores sociais.
Vale o mesmo para os protagonismos sociais.
As mudanças são trabalho de gente comum – cidadãos que se organizam e realizam - ou são doadas por salvadores da pátria? A transformação da nossa cidade e do nosso país resulta da iniciativa coletiva ou da ação de heróis de ocasião, que nos transformam em expectadores passivos do nosso destino?
Esses símbolos são importantes.
Por isso, talvez ingenuamente, me parece que a nova alegria do Carnaval de São Paulo encerra uma lição de otimismo.
A mesma energia coletiva que inventou essa folia onde não havia nada pode ser usada para inventar outras formas de felicidade, menos efêmeras - uma educação melhor, uma saúde melhor, um transporte melhor, uma polícia melhor, um país melhor.
Ao contrário do que sempre nos disseram – e continuam a nos dizer, todos os dias – o Brasil pode mudar. Não por obra de salvadores de pátria, mas como resultado de uma ação coletiva fundada no nosso desejo, na nossa organização e na existência de um Estado que encaminhe as mudanças, e não as impeça.
Hoje, na manhã ensolarada de quarta-feira de cinzas de 2016, na cidade de São Paulo, antigo túmulo do samba, todos os sonhos me parecem possíveis.
http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ivan-martins/noticia/2016/02/invencao-da-felicidade.html
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