IVAN MARTINS
21/10/2015 - 09h03 - Atualizado 21/10/2015 09h16
Ando obcecado nos últimos dias pela ideia de cumplicidade. Na confusão sentimental em que a gente vive, ela virou uma régua para medir a importância das relações. Com quem você faz sexo já não conta muito. De quem você gosta, também não: às vezes a pessoa não quer você; outras vezes deixou de querer. Mesmo o namoro ou casamento não asseguram nada, se as pessoas dentro dele perderam o vínculo e o convívio se tornou estéril.
A cumplicidade, ao contrário, é algo vivo e recíproco, testado por sentimentos instantâneos. Se aconteceu alguma coisa grave, você precisa falar com aquela pessoa. Se teve uma grande alegria, ligará primeiro para ela. É o olhar acolhedor dela – no sofá, no fim do dia; durante a conversa em voz baixa no restaurante, ou rindo no Skype – que recoloca no lugar as suas emoções, que oferece alento e segurança.
Ter cúmplice significa não estar sozinho, ainda que à sua volta, momentaneamente, não haja ninguém.
Amizades oferecem um grau elevado de cumplicidade – são essenciais, na verdade - mas falta a elas o vínculo carnal. A intimidade física e a comoção afetiva criam laços que amarram mais forte e mais fundo que a amizade, ainda que temporariamente.
É possível ter vários amigos, mas o sentimento da cumplicidade – como eu tento descrevê-lo – é reservado a uma única pessoa. Sua existência separa o joio do trigo. Distingue o que é essencial do que é supérfluo. Aponta, no meio da confusão e da bagunça, o que é claro e límpido.
É possível, imagino, viver momentos de confusão. Sua cumplicidade pode estar dividida entre duas pessoas - uma no passado, outra no futuro. Duas no aqui e agora, recém-chegadas. Mas isso não dura, eu acho. Rapidamente o coração se resolve. Ele escolhe alguém, sinaliza, elege. O que fazemos com isso é de nossa conta.
Como todo sentimento essencial, a cumplicidade não nasce do nada. Ela é construída aos poucos, numa combinação gradual de atração, intimidade e confiança. Vai sendo erguida por conversas e experiências conjuntas. Sobretudo experiências. Elas reforçam a presença do outro na nossa vida e criam um repertório comum. Sedimentam a sensação de NÓS – em oposição a ELES - sem a qual as subjetividades não se juntam.
Isso demora um tempo em se fazer e outro tempo longo se desfazendo, depois. Por isso as cumplicidades resistem ao fim das relações, até fisicamente. Você encontra o ex amor numa festa e, irrefletidamente, adota um tom de voz e uma linguagem corporal que deixam a namorada ou namorado atual atônitos. Às vezes, a cumplicidade dura anos, e constitui um obstáculo ao início de novas relações.
Como colocar um novo alguém na sua vida se a cada curva do caminho você corre – feliz ou devastado - para o ombro conhecido?
Tenho a impressão, frequentemente, que o processo de se apaixonar pode ser descrito como a construção da cumplicidade. Casais que vão dar certo rapidamente desenvolvem um vocabulário e um cardápio de ideias comuns. Apelidos carinhosos, referências irônicas aos amigos e parentes, pontos de vista taxativos (e nem sempre racionais) sobre coisas e pessoas. Logo depois, vêm os hábitos e projetos comuns: adotar um cachorro, aprender japonês, passear de bicicleta no domingo. Ou cozinhar.
A gente se apaixona também por esse movimento de descobrir e envolver o outro, de erguer com ele, pecinha por pecinha, um mundo pessoal que parece Lego, mas que está vivo e respira.
Nele, há um esforço inconsciente de ampliar o espaço de concordância e deixar de fora o que for incompatível. No processo, cria-se uma bolha antissocial cuja espessura varia de casal para casal, mas que sempre existe. Se ela não está lá é porque ainda não foi criada ou porque explodiu, prenunciando o fim dos tempos. Acontece.
Além de gostosa, a cumplicidade torna as pessoas insubstituíveis. Ela cria a sensação de que há um único ser humano no planeta que nos preenche emocionalmente. Apenas ele ou ela nos entende e faz com que nos sintamos à vontade, porque nos reserva um espaço equivalente em sua vida. Na ausência repentina dessa personalidade única – e do nosso universo espelhado, que ela carrega consigo - o mundo parece vazio de sentido. Perfeitamente cinza e assustador.
Para quem está nesse deserto, uma notícia: novas cumplicidades se constroem, assim como as velhas perecem. A segunda parte não parece animadora no momento, mas será. Um dia, você encontrará sua ex alma inseparável e não sentirá mais que carinho fraternal por ela. Não terá impulsos de tocar seu rosto ou lhe contar como está feliz no emprego novo. Algo terá se perdido, inevitavelmente. Mas algo novo estará em ebulição.
Em algum lugar a 10 ou 1000 quilômetros de distância prepara-se uma nova cumplicidade. Pode ser com a moça de ontem no Facebook. Talvez com o rapaz tímido do andar de baixo. Você não saberá até que aconteça. Não terá ideia até que o futuro se apresente à sua frente com uma única exigência: descobrir a sua forma de cumplicidade. Com quem ela será construída estará claro.
http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ivan-martins/noticia/2015/10/quem-e-o-seu-cumplice.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário