IVAN MARTINS
03/06/2015 - 09h08 - Atualizado 03/06/2015 18h45
Estar na praia sozinho é uma delícia. Há um silêncio enorme, rompido apenas pelo barulho das ondas quebrando. Sentado na areia, a gente pode ler até cansar, sem que ninguém nos apresse ou nos distraia. Além do pôr do sol, é possível olhar (discretamente) o corpo bonito das pessoas que passam – não haverá o olhar recriminador de uma parceira ciumenta, muito menos uma cotovelada dura nas costelas, como já aconteceu comigo.
Sozinho, a gente pode escolher ficar quieto, meter-se numa partida de futebol ou puxar conversa com quem vai ao lado - do vendedor de mate à moça esticada na canga verde-amarela. Tudo depende das circunstâncias e do temperamento. Assim como o mar, as possibilidades estão lá. A gente decide mergulhar ou não.
O que não se consegue na praia, sozinho, é passar protetor solar nas costas.
Por mais flexível e habilidosa que seja a pessoa, há uma faixa de um palmo de altura, que começa no meio das omoplatas, impossível de atingir. A gente tenta por cima, com a mão descendo da nuca para a cintura, mas o alcance é limitado. Então tenta por baixo, com as mãos vindo da cintura e procurando subir, mas tampouco essa rota avança. Pela esquerda ou pela direita, com a palma ou com as costas das mãos, nossas articulações emperram na metade do caminho. Há um trecho de anatomia inacessível aos homens (e mulheres, suponho) que não trabalhem no Cirque du Soleil ou sejam professores de ioga.
Essa é a parte do corpo que fica manchada de sol, inapelavelmente. Ela assinala, para quem souber olhar, quem são os solitários da areia, voluntários ou não. Também ilustra, na forma de metáfora, os limites da condição humana. Há milhões de coisas que somos capazes de fazer sozinhos, de forma feliz ou pelo menos satisfatória, mas passar protetor solar nas próprias costas, definitivamente, não é uma delas.
Qual a importância disso tudo? Vocês me digam. Só alinho as elucubrações de um sujeito que passou 10 dias na praia sozinho e sofreu os estados emocionais decorrentes da situação.
No primeiro dia, a gente está eufórico com a liberdade da experiência. No segundo dia, o silêncio cheio de sol começa a causar uma aflição inversa à da claustrofobia. No terceiro, você está a ponto de perguntar as horas à moça ao lado, como se não tivesse relógio e celular para obter a informação. No dia seguinte, gemendo de carência, efetivamente pergunta – e mergulha, como era sua intenção, numa conversa cheia de banalidades. As mesmas que você pretendia evitar ao viajar apenas em companhia dos seus livros.
No primeiro dia, a gente está eufórico com a liberdade da experiência. No segundo dia, o silêncio cheio de sol começa a causar uma aflição inversa à da claustrofobia. No terceiro, você está a ponto de perguntar as horas à moça ao lado, como se não tivesse relógio e celular para obter a informação. No dia seguinte, gemendo de carência, efetivamente pergunta – e mergulha, como era sua intenção, numa conversa cheia de banalidades. As mesmas que você pretendia evitar ao viajar apenas em companhia dos seus livros.
No restante das férias, resgatado à condição de animal social, tentará conversar com várias pessoas, principalmente do sexo oposto. Terá sucesso algumas vezes, outras não. Mas, na falta de uma parceira ou de uma companhia de verdade, continuará com as costas manchadas de sol. Talvez seja mais fácil achar um beijo na boca do que uma mão que passe creme nas costas de um estranho.
Isto nos diz alguma coisa sobre a vida e nossos relacionamentos, suponho.
Sugere, por exemplo, que a nossa independência não passa de heroica fantasia. Qualquer bobagem escancara a fragilidade da nossa condição. Depois de cinco minutos de malabarismos ridículos e inúteis na areia, diante do olhar penalizado (mas imóvel) dos demais humanos, você descobre que a única maneira de proteger suas costas do sol é ter alguém que o ajude a fazer isso. Uma situação de absoluta dependência.
Claro, você pode sobreviver com as costas manchadas. Dane-se o dermatologista. Pode exibir a sua ciclovia dorsal-transversal como marca de orgulho: “Sim, vou à praia sozinha e enfrento as consequências. E daí? Não preciso de ninguém ao meu lado, muitos menos às minhas costas. Estou me lixando para a estética e a opinião de vocês”. Pode fazer isso tudo, claro, mas nada mudará o fato inexorável: se quiser usar protetor, se precisar usar protetor, vai ter de pedir ajuda. Ponto.
Da minha parte, já me conformei a esse fato elementar da existência – e às suas inumeráveis consequências.
Estar sozinho é bom, mas por tempo limitado. Viagens mais longas que um par de dias supõem companhia. Idealmente, ao menos. Como eu não sei pedir a estranhos que me passem protetor, nem sou um ás em fazer amigos ou amores instantâneos, tenho de levar comigo gente que me queria bem. E de cujas costas eu tenha profundo prazer em tratar. Isso não se improvisa. É preciso procurar, achar, cuidar. Sobretudo essa última parte. A gente perde as pessoas que ama e que nos amam por desatenção. Por egoísmo. Por medo. Por preguiça. Por bobagens acumuladas como roupa suja no cesto. Depois ficamos por aí, nos lamentando diante do espelho com as costas queimadas, incapazes de passar sequer um hidrante que traga alívio ou um remédio que combate as queimaduras. Para isso também precisamos do outro.
Logo, se eu tivesse de dar uma única dica sobre o futuro, seria simples: ache alguém em quem você goste de passar protetor solar, e que queira sempre passar protetor em você. Uma vez encontrado, cuide. No longo prazo, esse é o maior cuidado que você pode ter com a sua pele, e ainda mais com você mesmo. Nunca vai faltar protetor solar nas farmácias, é certo. Mas alguém que o passe em demoradamente em você, com desvelo e com prazer, isso não se acha em qualquer praia, nem se encontra na orla de qualquer oceano.
http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ivan-martins/noticia/2015/06/quem-passa-protetor-nas-suas-costas.html
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