segunda-feira, 30 de março de 2015

Gays, negros e eleitores de Dilma

IVAN MARTINS
31/10/2014 16h49 - Atualizado em 31/10/2014 17h28
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Na pracinha onde costumo caminhar, instalou-se a cizânia. O grupo de frequentadores que andava e conversava unido rachou em dois – um pedaço grande, outro pequeno. Terça-feira, uma conhecida minha fazia alongamento ao sol quando três amigas dela passaram, caminhando. Uma disse para a que se alongava:  "Estou com pena de você". A resposta foi rápida e ríspida: "Pena de quê? Eu é que tenho pena de gente ignorante".
Adivinharam o motivo da discussão? Descobri no minuto seguinte.
Minha conhecida que se alongava votara em Dilma Rousseff. Agora, se sente hostilizada pelo resto da turma. "Minha família é de tucanos e não briguei com ninguém. Isso é um absurdo", ela me disse, entre brava e sentida. Outra amiga dela, também eleitora de Dilma, juntou-se à conversa para contar que conhecidos haviam lhe negado carona no dia anterior, porque ela votara no PT. Estava pasmada.
Minha impressão é que os paulistanos que votaram em Dilma experimentam hoje o que sentem os gays, os negros e os pobres: a sensação de ser discriminados, o medo permanente de ser vítimas de uma grosseria. É o sentimento das minorias.
Na cidade de São Paulo, os votos para presidente se dividiram em 64% para Aécio e 36% para Dilma. Em números absolutos: 4,1 milhões para o tucano; 2,3 milhões para a petista. Foi uma vitória acachapante. Ela produziu uma espécie de maioria moral na cidade, que às vezes fala alto e grosso. Petistas e simpatizantes se sentem intimidados.
Isso não significa que o mundo ao redor tenha se transformado num bloco hostil. A maioria continua civilizada. Mas há uma diferença. Diante de um eleitor declarado do PT, abre-se a possibilidade de que alguém fique agressivo. Na mesa do bar, no balcão da padaria, no elevador do prédio. Mesmo no Facebook. Essa possibilidade é inquietante. Modifica a forma como as pessoas se relacionam com o mundo.
Lembrei a canção "Like a rolling stone", de Bob Dylan: "Agora você não ri tão alto, agora você não parece tão orgulhoso/ Como é sentir-se assim"? Péssimo, eu diria. Se algo de bom existe nisso, é o aprendizado. Experimentar o que sentem os discriminados é instrutivo.
Você vai ao parque Villa-Lobos, vê um casal de garotas abraçadas, namorando, e pensa: que coragem! A qualquer momento, alguém pode dizer uma besteira. Mas elas estão lá, firmes. Provavelmente um pouco tensas. Agora dá para ter uma ideia - ainda que vaga - do que significa estar na pele delas. Assim como da família negra que entra no restaurante caro e todo mundo espia, estranhando. São estrangeiros? Ou do pobre que visita um prédio chique e precisa se submeter ao comportamento inquisitivo do porteiro. A qualquer momento, pode vir uma patada.
Outro dia, uma amiga foi à padaria com a estrelinha do PT no peito. O homem que cortava frios disse a ela: "Você vota como uma jumenta". Assim, do nada, para a mais gentil das criaturas. Num prédio da velha classe média, um senhor se incomodou com adesivos de Aécio colados na parede do elevador, fez uma queixa, e o sindico ouviu do propagandista de interiores: "Quem foi o comunista f.d.p. que reclamou"? Ele achou melhor não revelar. Como os dois episódios são anteriores à votação, torço para que os protagonistas tenham voltado à sanidade.
Alguém dirá que eleitores de classe média do PT não podem ser comparados a quem vive todo dia a experiência do preconceito. Um xingamento ocasional não é o mesmo que a sensação de vulnerabilidade permanente. É provável também que eleitores de Aécio sofram discriminação equivalente em ambientes onde eleitores de Dilma são maioria. Essas objeções estão corretas, mas não mudam um fato: o clima em São Paulo segue tenso; e os petistas, em menor número, estão pouco à vontade.
Como detesto essa atmosfera de conflito, torço para que a vida volte ao normal rapidamente. Na minha praça e na minha cidade. Em toda parte, na verdade. O discurso de ódio precisa ser posto de lado. Todos queremos um país engajado na política e gente disposta a debater ideias e visões sobre o Brasil. Vigorosamente, se for o caso. Mas isso não significa segregar, ofender, muito menos agredir quem pensa de forma diferente. Talvez, de agora em diante, tenhamos de conviver com discordâncias que andavam camufladas e vieram à tona nas eleições. O importante é fazer isso com urbanidade. A cordialidade brasileira pode ser apenas um mito, mas é daqueles que merecem ser cultivados. A alternativa seria terrível

Começar de novo

IVAN MARTINS
24/12/2014 09h59 - Atualizado em 24/12/2014 10h06
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Ontem, debaixo do chuveiro – cheio de culpa por ainda tomar banho em plena crise d'água – tentei listar as coisas que gostaria de ter em 2015. Mais água, seguramente. A graça do amor, sobre a qual escrevi na semana passada. Mas não só. Enquanto me ensaboava com a água fechada, me ocorreu que seria bom ser mais desapegado do que sou. De tudo: coisas, pessoas e situações. Gente apegada sofre muito. Cada vez que ocorre uma ruptura, o mundo vem abaixo. Cada vez que uma perda acontece, morremos. Que tal mudar isso no Ano Novo?
Já sei o que alguns dirão: não se muda isso de uma hora para outra. Um traço de personalidade desses nasce conosco, ou se desenvolve muito cedo. É, de qualquer forma, algo profundo, arraigado. Provavelmente, os apegados já choravam quando a mãe, exausta, os tirava do peito. Desde então têm trauma de separação. Ainda que o apego seja inato, quase biológico, pode ser mexido. Da mesma forma que somos a única espécie do planeta capaz de lembrar suas dores, somos também dotados do impulso irremovível da esperança. Onde há gente, pode haver mudança. Ou, pelo menos, aspiração.
Outros, assumindo que seja possível desapegar, perguntarão se é realmente desejável. Não é bonito alguém que se envolve? Não é humano e natural alguém que incorpora gente à sua volta? A resposta é: depende. Às vezes, envolver-se é uma delícia. Noutras, seria preferível ter caído num poço e quebrado a perna. Nunca pensei nisso dessa forma, mas a média entre poços e situações deliciosas talvez não seja favorável aos apegados.
Os desapegados parecem mais felizes. O sentimento acabou? Eles sofrem pelo tempo regulamentar – de 15 minutos a duas semanas –, depois retomam a rotina. Sem traumas. Em vez de, como os apegados, morar numa montanha russa em que a vida oscila entre altos e baixos terríveis, eles vivem em práticos fletes emocionais. Requisitam serviços afetivos e sexuais quando precisam, não dividem o espaço com ninguém, e tudo está sempre arrumado, no mesmo lugar, sem confusão e sem mistura. Não gostaria de morar num lugar emocional como esse, me pareceria asséptico e impessoal. Mas quem vive assim parece estar bem. Ou engana.
Independência e estabilidade afetiva parecem o ponto forte da vida desapegada. No centro dela, está um indivíduo autônomo e auto-suficiente, que depende pouco – ou quase nada – do afeto alheio. Ele tem, como todos na vida, redes sociais que provêm proteção e carinho. No centro delas, não há alguém especial de quem eles dependem para garantir a paz do dia e o calor da noite. No centro da vida deles, estão eles mesmos, como indivíduos – um conceito óbvio, ainda assim estranho a quem depende da presença de um outro para ser feliz.
Como se forma gente de um tipo ou de outro? São as experiências que nos tornam menos permeáveis ao envolvimento? Ou quem adora se vincular já nasceu assim? Somos o resultado de uma mistura indecifrável, mas certamente não existe hierarquia naquilo que somos. Não há melhores e piores. Há um bocado de caráter na atitude de quem decide lidar com o mundo sozinho, assim como há enorme coragem nos atos de quem arrisca sua integridade emocional num relacionamento com estranhos – e todo ser humano é um estranho, mesmo depois de anos de convívio e de intimidade.
Sendo eu mesmo um apegado emocional, que sofre terríveis nostalgias e tem dificuldades imensas em recomeçar, não seria ruim iniciar 2015 com um grão de desapego. Não gostaria de virar uma pedra de gelo ou de me tornar um daqueles tipos indiferentes, que olham o mundo com a boca virada para baixo, num estado permanente de desagrado. Esses são infelizes. Falo de ser um pouco mais contente sozinho, de me assustar um pouco menos com a solidão, de lidar com a dor – essa que nubla o dia de amanhã e encharca o hoje de melancolia - de forma menos exasperada.
O ano que começa daqui a pouco, dizem, será mais difícil na vida pública. Em muitas vidas privadas, por diferentes razões, tampouco se anuncia mais fácil. Há que enfrentá-lo com aquela mistura de esperança e resignação que nos define como espécie desde os primórdios. A gente erra, sofre e faz de novo, um pouquinho melhor. Ou sofre, fundamentalmente, sem ter errado. Levanta-se assim mesmo – e avança. É disto que nos lembra o Ano Novo: a metáfora do recomeço. É nossa chance de pôr as coisas no lugar. Talvez, até de melhorá-las um pouquinho. De melhorar a nós mesmos. De começar de novo, com um pouco mais de desapego.

Dentro de nós, a alegria

IVAN MARTINS, IVAN MARTINS
18/02/2015 08h42 - Atualizado em 18/02/2015 10h41
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Um amor depois do outro. Em breve, nas livrarias (Foto: Reprodução )
A alegria vem de dentro ou de fora de nós? A pergunta me ocorre no meio de um bloco de carnaval, enquanto berro os versos imortais de Roberto Carlos, cantados em ritmo de samba: “Eu quero que você me aqueça neste inverno, e que tudo mais vá pro inferno”.
Estou contente, claro. Ao meu redor há um grupo de amigos e uma multidão ruidosa e colorida. Ainda assim, a resposta sobre a alegria me ilude. Meu coração sorri em resposta a essa festa ou acha nela apenas um eco do seu próprio e inesperado contentamento?
Embora simples, a pergunta não é trivial. Se sou capaz de achar em mim a alegria, a vida será uma.  Se ela precisa ser buscada fora, permanentemente, será outra, provavelmente pior.
Penso no amor, fonte permanente de júbilo e apreensão.
Quando ele nos é subtraído, instala-se em nós uma tristeza sem tamanho e sem fim, que tem o rosto de quem nos deixou. Ela vem de fora, nos é imposta pelas circunstâncias, mas torna-se parte de nós. Um luto encarnado. Um milhão de carnavais seriam incapazes de iluminar a escuridão dessa noite se não houvesse, dentro de nós, alguma fonte própria de alegria. Nem estaríamos na rua, se não fosse por ela. Nem nos animaríamos a ver de perto a multidão. Ficaríamos em casa, esmagados por nossa tristeza, remoendo os detalhes do que não mais existe. Ao longe, ouviríamos a batucada, e ela nos pareceria remota e alheia.
Nossa alegria existe, entretanto. Por isso somos capazes de cantar e dançar quando o destino nos atinge.
Nossa alegria inata se manifesta como força e teimosia: ela nos põe de pé quando nem sairíamos da cama. Ele se expõe como esperança: acreditamos que o mundo nos trará algo melhor esta manhã; quem sabe esta noite; domingo, talvez. Ela nos torna sensível à beleza da mulher estranha, ao sorriso feliz do amigo, à conversa simpática de um vizinho, aos problemas do colega de trabalho. Nossa alegria cria interesse pelo mundo e nos faz perceber que ele também se interessa por nós.
Por mínima que seja, essa fonte de luz e energia é suficiente para dar a largada e começar do zero. Um dia depois do outro. Todos os dias em que seja necessário.
Quando se está por baixo, muito caído, não é fácil achar o interruptor da nossa alegria. A gente tem a sensação de que alegria se extinguiu e com ela o nosso desejo de transar e de viver, que costumam ser a mesma coisa. Mas a alegria está lá - feita de boas memórias, do amor que nos deram, do carinho que a gente deu aos outros. Existe como presença abstrata mas calorosa, que nos dirige aos outros, que nos faz olhar para fora. É isso a alegria: algo de dentro que nos leva ao mundo e nos permite o gozo e a reconhecimento de nós mesmos, no rosto do outro. Empatia e simpatia. Amor.
Se a alegria vem de dentro ou de fora? De dentro, claro. Mas seu sintoma mais bonito é nos jogar para fora, de encontro à música e à dança do mundo, ao encontro de nós mesmos.

Ex que ri

IVAN MARTINS
28/01/2015 09h00 - Atualizado em 28/01/2015 10h09
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Por definição, ex tem de ser uma criatura destroçada, maltrapilha, terminal. Ex que ri, que posa no Facebook, que exibe felicidade publicamente é uma aberração da natureza e dos costumes. Para cumprir seu papel constitucional, ex tem de ser uma entidade discreta, quase fantasmagórica, de quem se ouça - só de vez em quando - um gemido cheio de dor e de saudades. Por nós. Ex existe para nos fazer sentir melhor com a sua infelicidade. Nunca o contrário.
Estou brincando, claro.
Depois de várias separações, muitas sessões de psicanálise e décadas neste planeta, aprendi que nossa felicidade pode ser medida pelo sentimento em relação ao ex. Se estivermos torcendo para que ele ou ela esteja miserável, é sinal de que a nossa própria vida está um lixo. Simpatia, carinho e mesmo distanciamento benigno sugerem que estamos saudáveis. Nem é preciso desejar ardentemente que ela ou ele seja feliz. Basta não torcer pela infelicidade alheia.
Ouvi, outro dia, um trecho do programa de rádio do Flávio Gikovate em que ele falava sobre isso. Dizia que ex casais às vezes estabelecem uma relação de gangorra - se ela fica bem, eu fico mal. E vice versa. Achei a imagem eloquente e a situação horrível. Mas fui obrigado a admitir que, mais de uma vez, senti exatamente assim, torcendo para que a vida da ex andasse torta para acompanhar a minha, que virara um desastre. Posso atestar que nada de bom surgiu desse sentimento.
Hoje em dia cultivo a ideia da reciprocidade.
A reciprocidade estava lá no começo dos relacionamentos e acredito que estará no fim. Dos amores verdadeiros, aos menos. O desejo e a alegria nos ligavam no início. Agora, é a dor da separação que nos aproxima. Continuamos conectados. No manual que um dia escreverei sobre o sofrimento amoroso, estará previsto, na forma de lei incontornável, que ninguém sairá de um grande amor indiferente enquanto o ex chafurda em desespero. É uma injustiça de proporções cósmicas.
Acredito que é possível - e ainda mais, desejável - que nossas experiências amorosas sejam encerradas com gestos mútuos de carinho. Ou mesmo de amor. Em vez de trancar-se no ressentimento de quem não é mais desejado, talvez possamos abraçar e ouvir. Em vez de virar as costas a quem não nos desperta mais desejo, abraçar e falar. É o contrário de tudo o que fomos ensinados a fazer, mas talvez funcione. Deve ser possível dar ao romance que acabou uma forma que não seja apenas o vazio de quem abandona ou foi abandonado. Um grande amor não termina em ponto final. Ele se estende no tempo, dentro de nós. Guardar a aliança numa gaveta não o extingue.
O que fazer?
 
Não há respostas fáceis, Aquilo que nos persegue como lobo depois da separação é o vazio criado pela  da ausência do outro. Há que viver no interior dessa névoa, porém. Atravessá-la com calma e resignação. Respirando, como dizem os professores de ioga. Os amigos estarão ao seu redor, a família, o trabalho. O ex amor pode atender ao telefone no meio da noite, se a tristeza for intransponível. Por que não? Se as portas estiverem abertas, os dois podem cruzar para um abraço.
Parece utopia? Pode ser. Para alguns talvez não exista outro jeito além de trancar-se e esperar. O outro pode ser - ao menos temporariamente - o inimigo. É possível que seja necessário suportar as 24 horas de cada dia enquanto a vida se refaz, em câmera lenta. A abstinência do outro pode ser a única forma de renascer. Mas nem sempre é assim.
Numa manhã de domingo, é possível caminhar com carinho e melancolia ao lado da mulher que nos amava profundamente, e por quem ainda seríamos capazes de nos atirar na frente de uma bala. A relação como era acabou, mas algo permanece. A ligação ainda existe. Há que inventar um nome para esse momento, vivê-lo como parte da experiência amorosa. Sem raiva, sem ressentimento, sem indiferença. Sem medo, também. Aberto ao que a vida pode ensinar. O jeito antigo foi vivido e deu errado.Talvez exista um jeito novo. Ex que ri é melhor do que ex que chora - se estivermos preocupados com ela.