quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O outro que há em nós


Quem some da nossa vida leva um pedaço da gente

IVAN MARTINS
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IVAN MARTINS É editor-executivo de ÉPOCA (Foto: ÉPOCA)
Todo mundo tem ex, mas nem todos se relacionam com elas (ou eles) da mesma maneira. Boa parte dos homens ao meu redor, por exemplo, parece se dar excepcionalmente bem com as mulheres do passado deles. Falam com elas, jantam com elas, vão a festas com elas. Eu não. Há duas ex que são importantes com quem eu não troco palavra e outras tantas que eu permiti que sumissem. Para meu azar. Se cada uma das pessoas do passado conta um pedaço da nossa vida, há vários pedaços de mim que se perderam.
Quando se fica muito tempo com a mesma pessoa, sobretudo quando se é muito jovem, ocorre uma troca imensa e transformadora. Quem teve namoros longos na adolescência sabe como é. A gente cresce, aprende e se forma sob o olhar do outro, com a influência dele. Há o jeito de transar, o jeito de gostar, o jeito de pensar e conversar. Os valores. Somos esponjas e nos embebemos de quem está tão perto num período tão crucial.
Logo depois, na juventude, ocorre coisa semelhante. Você dá passos essenciais na vida – termina a faculdade, arruma o primeiro emprego, vai morar junto - em companhia de alguém que influencia e partilha as suas escolhas. Os amigos estão lá, claro. A família nunca deixa de ser importante. Mas é essa namorada (ou namorado) que divide intimamente os primeiros eventos da vida adulta, quando estamos aprendendo quem somos e o que queremos. A pessoa ao lado ajuda a moldar nossas definições.
Isso vale para os períodos posteriores da vida. Os nossos parceiros são parte essencial de tudo. Viajam conosco, riem conosco, trabalham conosco, cuidam de nós. Quem me deu aquele livro? Quem me apresentou aquela banda? Quem estava comigo na noite em que morreu aquele amigo? Ninguém pode dimensionar o valor das tardes de encantamento que as pessoas amadas nos deram. Ninguém sabe o quanto elas são importantes.
Uma das minhas teorias (descartáveis) sobre o amor é que apenas o tempo nos permite avaliar sua real importância. A pessoa passa pela nossa vida de um jeito rápido, quase acidental, e, anos depois, por força das memórias que insistem em voltar, a gente percebe que ela sobrevive em nós, apesar de ter estado tão pouco tempo conosco. Já aconteceu comigo. Sei que acontece com os outros. Isso significa que não apenas os longos relacionamentos que têm importância. Os outros também podem ser essenciais.
Vista de um jeito triste, a vida é uma longa enumeração de perdas, mas algumas delas são totalmente desnecessárias. É como se não soubéssemos como o tempo e os afetos são importantes e saíssemos por aí desperdiçando.
“Fulana, com quem eu vivi entre os 25 e os 30 anos, dane-se ela. Brigamos na hora de dividir as coisas na separação e nunca mais nos falamos.” Lá vai um bloco da sua vida que se tornou inacessível. “Sicrano é um crápula. Nós rompemos e logo depois ele saiu dando em cima das minhas amigas. Não sei como eu pude ficar tanto tempo com um babaca desses.” Eis outro pedaço da vida deletado. “Tenho saudades daquela garota, ela é tão legal, mas eu sumi sem falar nada, porque a Beltrana era ciumenta, e agora tenho vergonha de ligar. Já passou tanto tempo”. Péssimo, não?
Por isso, cuidado ao jogar pela janela relações valiosas. Cuidado ao descartar pessoas queridas. Não há tantas delas assim numa única vida. E cada uma delas leva consigo um pedaço da história da nossa história.
Isso não quer dizer que a gente não tenha de fazer rupturas e avançar. As coisas acabam para que outras coisas comecem. Tem gente que não termina nada, que tenta deixar todas as portas abertas, manter todas as linhas de telefone funcionando. Não dá. É preciso haver silêncio e afastamento. Há que permitir que as coisas terminem e que os sentimentos se reciclem. Então, sim, as pessoas podem voltar a se relacionar, de outro jeito.
Quando estamos apaixonados e levamos um pé na bunda, temos a tendência, muito humana, de querer ficar por perto, “como amigo”. Mentira. Todo mundo já fez isso, mas é bobagem. Dói muito e não adianta nada. Quanto termina, a gente tem de cair fora. A amizade virá depois, quando as sensações mútuas forem outras.
Há quem defenda a teoria de que relações de amizade entre gente que se amou são impossíveis. É outro jeito de dizer que relações erotizadas serão assim para sempre. Eu não acho. Os sentimentos, como a água, correm e vão parar em outro lugar. Eles tomam outra forma. A atração e o desejo não desaparecem inteiramente, mas se integram a outro contexto. Exacerbam o carinho por aquela pessoa que já foi tão próxima. Criam uma camada de compreensão que não existe em outras relações. Depois que o amor e a dor ficaram para trás, permanece um afeto contaminado pela antiga intimidade. Eu gosto desse sentimento, aprendi que ele é uma parte boa da vida, sei que é mais gostoso, infinitamente mais doce, que o vazio das relações que se extinguiram – que nós permitimos que se extinguissem.

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